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Pensar sobre a representação das mulheres nas narrativas midiáticas é um desafio dada a diversidade que esse grupo representa. A opressão de gênero, apesar de firmar presença em caráter coletivo, porém, de formas distintas, não pode ser considerada o único marcador, ou o principal. Refletir sobre as mulheres implica, portanto, ter a consciência de que esse pensamento deve ser atravessado por outras instâncias além da opressão de gênero e é justamente nesta problematização que se insere a teoria e prática interseccional. Raça, classe (DAVIS, 2016; HOOKS, 1981; LORDE, 2019) e sexualidade principalmente relacionada à crítica à heteronormatividade (BUTLER, 2003), se unem ao gênero e o interseccionam no momento de refletir sobre as opressões sofridas. Não é uma tarefa simples, essa de atravessar as avenidas identitárias que se cruzam e entrecruzam (CRENSHAW, 2002; AKOTIRENE, 2019) e perceber quais interseccionalidades de opressão se chocam e se entrelaçam (COLLINS, 2019), gerando as violências sofridas pelas mulheres.

Na minha pesquisa de tese [1] , o desafio tem outra variação que o complexifica: penso sobre as mulheres gordas, ou seja, a questão estética ou a aparência, representada pelo formato, tamanho e peso do corpo, também é considerada uma interseccionalidade importante. Neste cenário, a gordofobia insere-se como importante forma de opressão se unindo ao colonialismo, racismo, machismo, sexismo, classismo, etarismo, capacitismo e lgbtqfobia (entre outras formas de dominação).

Hoje mencionado recorrentemente pelos coletivos feministas, a visibilidade do termo “interseccionalidade” faz parte do boom teórico, metodológico e temático deste novo momento histórico, cultural e social dos feminismos. No entanto, o conceito tem sua raiz política e fundamento cunhado muito anteriormente, como explica a teórica e feminista negra Carla Akotirene: “Tal conceito é uma sensibilidade analítica, pensada por feministas negras cujas experiências e reivindicações intelectuais eram inobservadas tanto pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros.” (AKOTIRENE, 2019, p. 18). No Brasil, o pioneirismo da produção sobre interseccionalidade de raça, classe e gênero se encontra nos trabalhos de três intelectuais relevantes do feminismo negro: Lélia Gonzalez , Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro.

Heloisa Buarque de Hollanda (2019) relata que o lançamento da antologia feminista organizada por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa , This bridge called my back: writings by radical women of color, em 1981,estremeceu as bases do movimento feminista, provocando intensas discussões e divisões tanto no coletivo como na academia. Nesta obra, as autoras denunciam a problemática definição da categoria mulher como universal e problematizam a ideia de sororidade, também universal, decorrida de opressões do feminismo branco às mulheres negras.

Este mesmo ano também foi marcado pelo lançamento de outra obra seminal e importante para as discussões da interseccionalidade. Da ativista e teórica Angela Davis , Mulheres, raça e classe (2016) relaciona as categorias de raça e classe em uma análise do período escravocrata (século XIX) nos Estados Unidos, focando nas relações entre negras e negros escravizados e os senhores. A autora é fundamental para compreendermos as nuances das opressões e a impossibilidade de pensá-las sem se considerar a questão racial, principalmente em sociedades escravagistas que se fundaram historicamente com base no racismo e na desumanização das mulheres e homens negros, como é o caso do Brasil. Além disso, nesta obra, a autora evidencia a necessidade de não hierarquizar as opressões e a importância de se interseccionar as questões gênero, raça e classe ao se pensar em um novo modelo de sociedade.

Assim como bell hooks [2] , também em 1981, com o livro Ain´t I a Woman, sua primeira obra –, contribui de forma relevante para a construção da metodologia interseccional quando cruza e relaciona as experiências sexistas vividas pelas mulheres negras durante e após a escravidão e sua consequente desvalorização subjetiva, o machismo advindo dos homens negros e o racismo do próprio movimento feminista.

Audre Lorde , um pouco depois, em 1983 [3] , também irá realizar importante reflexão, quando afirma, relatando sua experiência pessoal e interseccional como mulher negra, lésbica, feminista, poeta, socialista, mãe de duas crianças e em uma relação interracial, que “não existe hierarquia de opressão”, já que as lutas de umas se mesclam nas lutas de outras e que todas as opressões dizem respeito a todes.

A luta é sempre contra múltiplas combinações e sobreposições das opressões e violências, que são interseccionais, sem que uma seja mais importante ou mereça mais atenção do que a outra.]

Entre as mulheres lésbicas eu sou negra; e entre as pessoas negras, eu sou lésbica. Qualquer ataque contra as pessoas negras é um problema para lésbicas e gays, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é um problema para pessoas negras, porque milhares de lésbicas e homens gays são negros. Não existe hierarquia de opressão.

(LORDE, 2019, p. 236)

Em 1984, Lorde publica Sister Outsider , outro marco do “feminismo da diferença”. A obra é uma coleção de ensaios e palestras que denunciam o complexo e desconfortável lugar simultâneo que Lorde experimenta, como “irmã e estranha”, como de dentro e de fora [4] . A autora, como mencionamos anteriormente, pensa cada uma das suas identidades e usa sua própria experiência traumática para falar de sexismo, heterossexismo, racismo, homofobia e classismo. Ela diz:

[…] sei que não posso me dar ao luxo de lutar contra uma única forma de opressão. Não tenho como achar que estar livre da intolerância é direito de apenas um grupo específico. E não tenho como escolher em que frente vou lutar contra essas forças discriminatórias, independente de que lado elas estejam vindo para me derrubar.

(LORDE, 2019, p. 236)

Na sequência, foi publicado texto de Patricia Hill Collins , importante teórica do feminismo negro que também aprofunda as questões conceituais relacionadas a gênero, raça e classe, com o trabalho intitulado Black Feminist Thought (1990).Apesar das discussões já estarem de certa forma presentes entre as movimentações do feminismo negro, foi a ativista, advogada e acadêmica afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw – uma das principais pensadoras da teoria crítica de raça – que formaliza teórica e conceitualmente a noção de interseccionalidade (AKOTIRENE, 2019).

Ela introduz o conceito em uma palestra realizada no Fórum Legal da Universidade de Chicago, em 1987, “e seu argumento partia da existência de infinitas formas de exclusões interseccionais, não apenas relativas às mulheres negras, mas também às deficientes, imigrantes, indígenas e outras variáveis discriminatórias.” (HOLLANDA, 2019, n.p).

A opção por iniciar esse texto enaltecendo, de forma breve, as teóricas negras responsáveis historicamente pela inserção do conceito de interseccionalidade no feminismo, e dessa forma não tratar diretamente sobre sua teoria, se justifica pelo fato de o conceito estar em constante disputa no campo acadêmico e isso lembra de minha necessidade e responsabilidade, como mulher e como feminista, de o relacionar ao território discursivo do feminismo negro, a matriz do pensamento interseccional (AKOTIRENE, 2019).

Ainda, complementa Carla Akotirene (2019, p. 51), não podemos apenas referir ao conceito como “feminismo interseccional” sem mencionar o feminismo negro, pois há, dessa forma, o “saqueamento da riqueza conceitual e apropriação […] retirando o paradigma afrocêntrico […] O feminismo negro substituído por feminismo interseccional equivale explorar a riqueza intelectual de África e chamar isso de modernidade.” (AKOTIRENE, 2019, p. 51). Contudo, é preciso lembrar, como nos orienta Stephanie Ribeiro ( 2019 , n.p), de que a interseccionalidade não é um conceito só das mulheres negras. Ele nasce das práticas de mulheres negras vinculadas ou não ao feminismo negro, mas deve ser uma urgência de todes.

O pensamento interseccional surge justamente para combater o que Crenshaw (2002) ressalta como “superinclusão” de apenas uma das estruturas na análise das sistemáticas das opressões. Isso pode ocorrer quando focamos nas mulheres e superincluímos a estrutura de gênero como causa da opressão sem investigar outras estruturas interseccionais como o racismo, o classismo ou o heterossexismo. Akotirene (2019, p. 73) exemplifica:

Podemos mencionar adolescentes mortas após abortos inseguros. Superincluído, gênero aponta para a criminalização do direito reprodutivo, quando a interseccionalidade exporia classe e geração na experiência de gênero, explicando o acesso das mulheres adultas e brancas às clínicas particulares, em condição segura de abortamento.

Todavia, se por um lado ocorre a superinclusão, por outro, frisa Crenshaw (2002, p. 175), pode ocorrer o contrário, com o desenvolvimento da “subinclusão” do gênero em uma análise; ou seja, “quando um subconjunto de mulheres subordinadas enfrenta um problema, em parte por serem mulheres, mas isso não é percebido como um problema de gênero, porque não faz parte da experiência das mulheres dos grupos dominantes.”

Crenshaw (2002) elabora um Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero, numa tentativa de protocolo a ser seguido e compartilhado por todas as instituições de direitos. Neste mesmo documento, a autora define interseccionalidade como:

A interseccionalidade é a conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, as opressões de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

(CRENSHAW, 2002, p. 177)

Pensando a inteseccionalidade como um sistema de opressões que está interligado (COLLINS, 2019) e que dialoga entre as coexistentes “avenidas identitárias do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo” (AKOTIRENE, 2019, p. 23), fica evidente que surgiu para representar, conforme já salientamos, um grupo de mulheres que se via invisibilizada dentro do movimento feminista, procurando ressaltar “quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz de opressões.” (AKOTIRENE, 2019, p. 47).

Por exemplo, em se tratando das mulheres gordas negras , a interseccionalidade nos evidencia onde, como e quando essas mulheres são discriminadas, violentadas e que elas estão, naturalmente, mais vezes posicionadas nas “avenidas identitárias” de opressão– neste caso, gênero, raça e peso, essencialmente – e mais vulneráveis às colisões das estruturas e fluxos da modernidade (AKOTIRENE, 2019) do que as mulheres gordas brancas. Esta seria o que Akotirene (2019, p. 64) chama de “discriminação interseccional”.

Esta frente de pensamento, conforme já relatei, fala com, além das mulheres negras, as caribenhas, terceiro-mundistas, lésbicas, africanas, latino-americanas e, mais atualmente, também com as feministas asiáticas, trans e queers, entre outras. Seu letramento discursivo deve ser inserido no conhecimento produzido pelo grupo LGBTQIANP+, por pessoas com deficiências, indígenas, trabalhadoras (AKOTIRENE, 2019) e demais grupos marginalizados historicamente.

Complementando, Cecilia Sardenberg (2015) evidencia a complexidade das análises interseccionais na contemporaneidade, ressaltando a inserção de outros marcadores de opressão que operam como produtores das desigualdades dos sujeitos políticos, como o capacitismo, etarismo e a lgbtqfobia. Neste contexto também inserimos a gordofobia.

É importante ressaltar que a interseccionalidade, principalmente sob o viés de Collins (2019) e Crenshaw (2002), não visa analisar uma soma de identidades que geram maior ou menor grau de opressão. Deve haver a análise profunda e complexa das condições estruturais que penetram os corpos, “quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade.” (AKOTIRENE, 2019, p. 43).

Ou seja, o olhar da feminista interseccional deve estar sempre focado na relação das diferenças, posto que todas são diferentes umas em relação às outras. O principal raciocínio destinado para as desigualdades impostas pelas matrizes de opressão, e não simplesmente só para as diferenças identitárias, “a interseccionalidade se refere ao que faremos politicamente com a matriz de opressão responsável por produzir diferenças, depois de enxergá-las como identidades.” (AKOTIRENE, 2019, p. 46). Lembrando, contudo, que a interseccionalidade não deve ser considerada como uma “narrativa teórica dos excluídos” (AKOTIRENE, 2019, p. 50).

A riqueza do pensamento interseccional está na negação das formas dicotômicas de enfretamento das opressões e das violências quando reconhece que não existe o grupo dos somente “oprimidos” e dos somente “opressores”, quando na verdade há a possibilidade de “sermos oprimidas e de corroborarmos com as violências.” (AKOTIRENE, 2019, p. 45).

No caso do objeto empírico de minha tese, sem o olhar interseccional, as análises recairiam no grupo de mulheres gordas, pensando a gordofobia como algo que atinge a todas elas, da mesma forma, pelo viés dos marcadores peso e tamanho. Porém, quando complexificamos, percebemos que os atravessamentos estéticos, referente aos tamanhos e formatos dos corpos, serão interseccionalizados por raça, classe, gênero, faixa etária, sexualidade, deficiência, território, e irão gerar experiências de opressão distintas neste grupo que poderia parecer “homogêneo”. Em termos da moda e mídia, por exemplo, uma gorda menor com cintura mais fina, pouca barriga e da cor branca, irá ter mais oportunidades de trabalho e visibilidade do que uma mulher gorda maior e, em mais intensa invisibilidade, uma gorda maior negra.

Aqui veremos que o corpo gordo menor desfruta de privilégios, assim como raça se estabelece como eixo opressor, quando tratamos do apagamento de mulheres negras gordas – interseccionadas pelo racismo e gordofobia –, e como eixo de privilégio, quando há a preferência e presença majoritária de mulheres gordas brancas na moda e na mídia. Em vestuário, uma gorda menor com poder aquisitivo encontrará mais facilmente roupas para seu corpo. Neste enfoque há, também, o marcador classe operando conjuntamente ao marcador peso (sem esquecer tamanho e formato do corpo).

Ribeiro (2019, n.p) alerta para um dos desafios principais da interseccionalidade no que tange à busca por emancipação, relatando que ela só é possível quando realmente assumirmos e tratarmos das “diferenças dentro das diferenças”. É de nossa responsabilidade, como feministas, disputar espaços novos para nossas narrativas, criando outras perspectivas, que são extremamente necessárias. “Reconheço a importância de as feministas conseguirem maior espaço na mídia, como aconteceu nos últimos anos, mas ainda temos dificuldade de conseguir englobar as pautas feministas, divergentes ou não, dentro de espaços institucionais capazes de impactar a estrutura que está posta.” (RIBEIRO, 2019, n.p).

Conforme a autora, só há chance de alcançarmos a legitimidade e o real desmonte da estrutura vigente se agirmos coletivamente, porém, o coletivo só tem força se em seu interior forem respeitadas as diferenças. A interseccionalidade é uma opção frutífera capaz de construir um futuro em que haja lugar para as narrativas múltiplas nas pautas dos debates. Para Ribeiro (2019), a revolução já está acontecendo, protagonizada principalmente por pessoas socialmente invisibilizadas. Portanto, faz parte de nosso legado criar novos paradigmas para a reflexão social.

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